Olá, Zeus

Autora: Felipe dos Santos de Souza (Curso Técnico em Eletrotécnica Integrado ao Ensino Médio)
Texto inspirado na obra "O mito de Sísifo", de Albert Camus, classificado em 2º lugar no Concurso Literário 2022 do Ifes Campus São Mateus.

Olá, Zeus.

Como vai? Lembra da condenação dada a Sísifo? Venho aqui lhe dizer algumas coisas sobre esse caso…

Não. Hades não jogou Sísifo no Tártaro. O mais esperto dos homens, aquele que por duas vezes escapou do baque de facções quando foi confundido com um dos chefes do morro, foi jogado no pé do morro, no Complexo da Penha. Não bastasse isso, Hades lhe deu uma pedra, a qual o mesmo carregava até o topo do morro, sendo que quando chegava em seu destino, a pedra rolava morro abaixo até próximo de uma biqueira, onde Sísifo iria buscá-la novamente.

Sísifo também era acompanhado por João Pedro, seu filho de apenas 11 anos. A criança era livre dessa pedra. Tinha liberdade para correr, brincar, ir à escola e até desenrolar com alguma mina que desse bola para ele. As outras crianças o chamavam de Jota Pedra, já que todos sabiam da condenação que Hades havia imposto a seu pai. O relacionamento com seu pai também não era fácil. Sísifo era um homem muito forte no começo de sua condenação, mas aos poucos foi perdendo seu físico, já que não comprava mais comida; às vezes não dormia, não bebia água direito e nem trabalhava mais. A prioridade era a pedra. João Pedro era alimentado por vizinhos e parentes que viam a situação do garoto, mas nunca quis sair de perto de seu pai, o menino acreditava que um dia seu pai poderia se livrar de sua condenação.

Em determinado dia, João estava acompanhando seu pai na subida até o topo do morro, quando ele deixou a pedra cair. Sísifo nunca esteve tão devastado e estressado como naquele momento. Sísifo ordenou que João buscasse a pedra próximo do pé do morro novamente, já que ele não aguentava ir até lá. O menino até pensou em dizer que dessa vez não iria. Não queria mais ver o pai com o corpo encardido, os dentes podres, os olhos sem alma e sem vida. Aquilo já o estava afetando. Cada vez que ouvia uma garota o chamando de “Jota Pedra” a raiva que o menino sentia pela pedra aumentava. Ele nunca entendia o motivo de Hades ter feito a condenação de seu pai ser algo que o condenasse junto. Apesar de tanto ódio acumulado, o garoto teve medo ao ver a agressividade de seu pai e foi mais uma vez até a biqueira buscar a pedra para Sísifo.

No dia seguinte, após correr risco indo perto de uma região perigosa do complexo buscar a pedra de seu pai, a criança foi à escola. Para si, o sentido da vida talvez fosse esperar a aula acabar para poder jogar bola, talvez fosse estudar muito para ser igual seu primo, concursado público da Petrobrás, ou até talvez fosse tomar cuidado para não entrar para o crime. Ia à igreja todos os dias e orava para que seu pai se livrasse da condenação. Na noite daquele dia, Sísifo não estava em casa como de costume, João teria que dormir sozinho. Os outros meninos tinham uma família em casa, que lhes dava a sensação de proteção. Dormiam à noite inteira tranquilos e podiam ter alto rendimento na escola no dia seguinte. João tinha um pai que mais parecia um zumbi, uma mãe que fugiu de casa com medo da aberração que seu pai havia tornado e alguns vizinhos batendo em sua porta todas as noites, reclamando da bagunça que seu pai fazia quando rolava a pedra. Não podia dormir durante as noites, mas os professores continuavam pegando no pé dele por dormir na sala.

João pouco falava com seu pai. Sísifo havia se tornado morador de rua. João via cada dia mais seu pai se afundando naquela situação. Para Sísifo, a vida de seu filho até tinha um certo valor, mas nada poderia fazê-lo parar com seu propósito. O menino estava até estudando, os vizinhos lhe davam comida e água, podia dormir na casa de sua irmã quando quisesse. Sísifo se acomodou quanto à criação de seu filho. Sempre dizia ao garoto que ia empurrar só mais uma vez, que não conseguia ficar sem empurrar, que chegar ao topo do morro era muito bom e que o garoto nunca entenderia. O garoto retrucava dizendo que sentia falta dele em casa, que precisava da atenção dele e que não aguentava mais o bullying das outras crianças, mas o pai já não ligava.

Certo dia, conversando com os moleques da favela, vazaram a ele a informação de que os traficantes da facção rival à de seu morro, a mesma que já havia tentado matar Sísifo, naquela mesma noite daria outro baque nos soldados da biqueira onde o então morador de rua sempre buscava a pedra. João foi para casa desesperado, esperando ver seu pai em casa pelo menos uma vez naquele mês. Sem sucesso, perguntou aos vizinhos onde ele poderia estar, mas simplesmente ninguém sabia. O garoto passou o dia procurando seu pai nos becos, vielas, biqueiras… Quando estava cogitando ir ao IML, viu a pedra descendo sozinha até o morro, indo perto da biqueira onde, em instantes, começaria um tiroteio intenso. O risco de bala perdida no local era muito alto. João sabia que seu pai iria seguir o rastro da pedra e então esperou ele passar. Quando Sísifo chegou, João tentou desesperadamente avisar a seu pai o que aconteceria caso descesse o morro só mais um vez como sempre. Dessa vez a morte poderia ser mais esperta. Sísifo não deu muita bola, falou que o garoto estava mentindo e que não poderia largar sua condenação. Ameaçou inclusive bater no garoto caso ele continuasse. João, olhando para seu pai descer o morro, indo em direção aos criminosos, gritou pela última vez para seu pai: “Pai, por favor, eu te amo. Larga a pedra e volta para casa”.

Atenciosamente,

Tânato.

Campos Elísios, 21 de Agosto de 2022.

Comentários

Postagens mais visitadas