A que conhecia o coração dos livros
Acolhido que estava naquela prateleira, num lugar que sabia ser chamado de “biblioteca”, aquele livro passava os seus dias. Estava acompanhado, de cada lado, por um colega cujos interesses eram os mesmos, uma tal de Literatura. Um deles era robusto, com imponente capa grossa, gravada com tipos dourados em relevo e com seus cadernos cuidadosamente costurados (dizia ele que tinha sido feito à mão). O sujeito tinha sotaque pesado (acho eu que era russo), e vivia a murmurar a história de uma tal de Anna Karenina, uma moça de vida bem complicada, como o nosso amigo ficava às vezes a pensar.
O outro vizinho já não tinha tanta pompa, mas não ficava atrás em voz e importância. Os cadernos, costurados, eram unidos por capa flexível, mas se gabava por trazer ricas ilustrações em suas folhas de papel pólen. O sotaque dele era claramente britânico, e trazia no peito estufado um selo de “best-seller”, em papel laminado, bem brilhante. Não achava seguro brincar com aquele colega, afinal, era acompanhado de uma gangue de outros seis volumes, todos muito envolvidos com algum tipo de trama em uma escola de magia, com muitas varas, feitiços e alguém-que-não-podia-ser-nomeado.
Mas ele era um pequeno volume, uma brochura, que na sua capa trazia a ilustração de um velho conduzindo um pequeno barco no mar. Não conhecia costuras, suas folhas eram reunidas utilizando sistema hot-melt (nome chique para cola quente). Mas permanecia perseverante e persistente, como o protagonista de sua história, em seu papel de livro que espera pelo/a leitor/a certo/a.
De onde estava, via sempre os transeuntes da biblioteca: leitoras/es, ora certas/os do queriam, ora navegando livremente pelas estantes à procura de um encontro fruto do acaso; estagiárias/os aflitos/as, imbuídas/dos da tarefa de guardar cada livro no seu devido lugar, diante de um inexorável sistema de classificação e de codificação de autores; bibliotecárias que mediavam as intenções de leitoras/es e, muitas vezes, socorriam os volumes que iam passear em terras estranhas (aqueles prateleiras de outros interesses, de outras línguas), fosse pela inobservância das/os leitoras/es ou falta de prática de quem estagia.
A pequena brochura ficava sempre intrigada com os pedidos feitos à bibliotecária:
- Sabe aquele livro de física que tem uma ponte na
capa?
- Lembro que tinha um capítulo sobre resistência…
- Eu queria aquele de capa azul!
- Lembro que tinha um capítulo sobre resistência…
- Eu queria aquele de capa azul!
Mas o pedido que mais deixava o
pequeno livro animado era: você poderia me indicar um livro de literatura? Ah,
isso fazia o seu coraçãozinho de papel bater muito mais rápido. E foi um pergunta dessa, numa tarde de inverno, que fez os seus
ouvidos de celulose logo ficarem atentos ao diálogo que se seguiu:
- Tem preferência por algum gênero literário?
- Gosto de romances.
- Quando você fala que gosta de romance quer dizer de histórias de amor, ou narrativas de ficção?
- Ah, sim, gosto de ficção! Narrativas variadas, contando uma história, sabe?!
- Ok! E você tem alguma preferência de tipo de literatura. Por exemplo: inglesa, francesa, estadunidense, alemã...?
- Gosto de romances.
- Quando você fala que gosta de romance quer dizer de histórias de amor, ou narrativas de ficção?
- Ah, sim, gosto de ficção! Narrativas variadas, contando uma história, sabe?!
- Ok! E você tem alguma preferência de tipo de literatura. Por exemplo: inglesa, francesa, estadunidense, alemã...?
A essa altura, nosso amiguinho já
estava na ponta de suas notas de rodapé, e via chegar cada vez mais perto uma
oportunidade de ter suas folhas sendo viradas por dedos ágeis. Não ligava para os
olhos, dizia sempre ele, podem ser fraquinhos, precisarem de óculos, lerem mais
devagar; mas os dedos precisavam ser
ágeis, pois gostava do contato deles em suas páginas, como se pudessem ser uma
extensão dele mesmo.
- Ah, não sei dizer, acho que gosto mais de
literatura brasileira...
Nosso amigo, de capa não tão azul
assim, viu sua esperança de ir visitar a casa de um leitor ir por água abaixo e
quase perdeu o interesse pela continuidade da conversa. E o leitor continua:
- Mas gosto também de literatura estrangeira e, hoje,
pensei em levar algo desse tipo, só não sei bem o quê.
A bibliotecária
caminhou até o corredor onde o pequeno livro estava. Seus vizinhos logo se
puseram em posição de sentido! De suas lombadas já emanava a certeza de que
seriam escolhidos.
Leitor e bibliotecária
prosseguiram conversando, dizendo do que já tinham lido e como tinham gostado (ou
não); falando que gostavam do desafio dos livros de muitas páginas (o russo já
soltou uma risadinha sem-vergonha), mas que faltava tempo naqueles dias...
muitas coisas para estudar (voltava a respirar o pequeno livro). Dizia o leitor
que talvez pudesse iniciar uma leitura em volumes, estendendo seu interesse por
mais semanas (a fita marcadora de página do volume 1 da coleção vizinha já se
ajeitava) mas que, ao fim, teria preferência por uma leitura mais rápida, que
não fosse superficial. O livro com a capa de um velhinho no mar não sabia o que
dizer sobre isso, já que “profundidade” é algo meio relativo; contudo, pensou
que se fosse escolhido, ao menos teria como cenário o mar, que pode de tudo ser
chamado, menos de superficial, não é mesmo?!
Então, nosso amiguinho fixou os
seus olhinhos tipográficos, mas contundentes, no semblante da bibliotecária e
disse (coisa de conversa entre livros e bibliotecárias, você que lê este conto,
não entenderia):
- Ei, você que conhece o meu coração, agora é a minha chance. Por favor, poderia me indicar?
Saiu dali um leitor carregando um
pequeno volume, de capa não tão azul assim, mas extasiado por ter sido escolhido.
Seus companheiros se despediram, felizes, porque entre livros tudo o que mais
se quer é que algum deles seja levado para casa, e seja lido, mesmo que pela metade!
A bibliotecária, habituada a
ouvir o murmurar dos livros, tratou de ajeitar os que lá ficaram, unindo
os vizinhos russo e britânico, para que não sentissem tanto a falta da lacuna
deixada pelo colega estadunidense, com palavras de alento e motivação.
-
Fiquem bem, rapazes! Em breve, o pequeno Ernest
volta para a gente. Até lá, quem sabe logo não chega alguém e leva vocês
também! Estarei sempre aqui para tentar mediar esse encontro!
Autora: Rossanna dos Santos Santana Rubim (Bibliotecária-Documentalista)
Lindo conto, cheio de sensibilidade e poesia. Uma linda homenagem aos bibliotecários e ao seu fazer diário. Parabéns!
ResponderExcluirLindo!
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