Buracos na estrada

Autor: Gustavo Alves Lima (Curso de Graduação em Engenharia Mecânica)
Texto classificado em 1º lugar na categoria "Aluno" do Concurso Literário 2020 do Campus São Mateus

Fazer a viagem de volta para casa sempre me traz boas sensações. É bom ver os campos por todos os lados, verdes nos tempos de chuva, dourados na estiagem, com árvores aqui e ali no meio do pasto dançando ao som do vento. No horizonte, o verde mais escuro das folhas dos eucaliptos. Na beira da estrada, as plantações de café se projetam, ora verdes, ora trajadas com um véu branco de flores.

Essa estrada de terra com buracos que viram enormes piscinas em dias chuvosos é o mais forte lembrete dos vários dias em que ia à escola. Em cada curva, uma lembrança sobe à mente, junto com a saudade do passado.

Todo dia era assim: acordar cedo pois lá para as 6h - 6h20 o carro ia chegar para me levar para a escola, juntamente com os amigos da vizinhança. Dependendo do motorista e da linha que ele estava fazendo, às vezes o transporte chegava mais cedo, às vezes mais tarde; às vezes vinha uma kombi, às vezes um ônibus.

E quando chegava, depois de oferecer aquele cafezinho ao motorista, eu subia no carro e íamos estrada adentro. Lembro-me ainda hoje do balançar do carro quando passava pelos buracos e da sensação do vento frio com cheiro de mato e orvalho que entrava pelas janelas semiabertas. Os raios de sol formavam estrelas no para-brisa e brigavam com a água condensada que embaçava a visão do motô.

Seja pelo friozinho ou pelo sono, as manhãs eram sempre silenciosas (coisa estranha, a julgar pela quantidade de crianças no veículo), exceto pelo rádio que ora tocava uma música sertaneja, ora contava histórias cantaroladas de superação pessoal.

Mas, nesse tempo, o que aquecia a minha mente era uma boa leitura. Nem o som do rádio, nem o ronco do motor ou a tremedeira do coletivo eram obstáculos.

E foram tantos livros interessantes.

Sem sombra de dúvida, escrevo essas palavras com uma vontade enorme de relembrar os tempos em que o escritor Jostein Gaarden colocava a minha noção de mundo, ainda minúscula, contra ela mesma, fazendo com que eu, juntamente com Sofia Amundsen, viajássemos entre as palavras de Alberto Knox em seu curso de Filosofia, navegando por dentro da história e mostrando como vários personagens saiam de seu mundo de ignorância para ver as coisas de um modo diferente – como se saíssem do fundo dos pelos de um coelho (onde está a população) para ir até as pontas e se admirar com a imensidão do mundo. Nesse meio tempo, não tinha carro, estrada, orvalho, sol, música, nada. Era só a minha mente flutuando, sendo carregada por Alberto Knox pelo tempo.

Mas as aventuras de Zac Power não poderiam ser colocadas em segundo lugar. Com aquela imaginação que só criança tem, lendo aquele livro aberto no colo, eu já não estava indo mais à escola. Estava junto com Zac em busca de uma nova aventura em um lugar misterioso. O caminho de ida até a escola era cada passo vivido pelo personagem no desenvolver de sua trama. Os tocos de árvores que apareciam pelo caminho formavam túneis super radicais; os desníveis dos mata-burros eram rampas que saltavam às alturas; as curvas tomavam proporções que só a imaginação poderia tentar descrever. Para mim, o ônibus não atrasava mais em sua trajetória: era a aventura que se estendia. A neblina que tampava o horizonte era como um indício de que ainda não sabia o que estava por vir.

Mas enfim, chega à escola. A neblina se foi, juntamente com o carro e o cheiro do mato. Chegou a hora de guardar na mochila e especular sobre os próximos episódios que seriam vistos no outro dia, a começar entre 6h e 6h20. A aventura dava uma pausa, porém lá eu notava que essa aventura não era só minha. Na biblioteca, os guris escondiam os demais livros de Zac Power atrás daqueles que eram esquecidos na estante para que pudessem ler todos os exemplares da coleção sem interrupções.

Interessante que, naquele tempo - tão próximo, por sinal -, os saltos do carro na buraqueira e o gargalhar do motor eram utensílios que aumentavam a intensidade da brincadeira, e não potenciais aspectos que levariam à necessidade de manutenção no veículo. Aliás, eu nunca havia me perguntado de onde Zac e sua equipe removiam fundos para custear as viagens. Pensando bem, será que Zac estava se preparando para o Vestibular? Ele fazia as atividades da escola? Que horas ele voltava para casa?

Não sei.

Pensar assim é algo bom?

Também não sei. Talvez como diria Sofia depois de seu curso de Filosofia, eu já esteja entrando nos pelos do coelho, onde vivem aqueles que perderam a capacidade de se admirar com as coisas.

Ou, analisando sob outra perspectiva, talvez assim como não entramos duas vezes num mesmo rio, como diria Heráclito, nós não lemos um livro duas vezes. Talvez nunca mais me sentirei numa rampa ao passar pelo mata-burro.

Será? E em que medida isso é ruim? Afinal, se eu o reler, terei lido no mínimo dois livros ao invés de um, segundo essa hipótese.

De qualquer modo, que leituras fantásticas! Hoje, depois de alguns anos e diversos outros livros que passaram por minhas mãos, não me lembro ao certo o que ocorria dentro daquelas páginas, mas ainda consigo sentir no balançar do carro o orvalho no rosto, o cheiro do mato e um pouco da aventura vivida em cada uma daquelas linhas. 

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