Capitu do século XI

Autora: Isadora Amábile dos Santos Fabres (Curso Técnico em Eletrotécnica Integrado ao Ensino Médio)
Texto Inspirado na obra "Dom Casmurro", de Machado de Assis, classificado em 1º lugar na categoria "Aluno" do Concurso Literário 2018 do Ifes Campus São Mateus

A mulher tentou acomodar-se finalmente no táxi que a levaria ao hotel. Com olhos ligeiramente mais sofridos e solitários do que os de outrora, a cigana oblíqua e dissimulada deu lugar a uma mulher determinada, objetiva, transparente e completamente despedaçada. A Capitu do século XXI era feliz. Era. Tempo passado. 

Durante os últimos dez anos, Capitu havia envelhecido trinta. Há tanto tempo precisava de companhia que nada pensara antes de saltar de paraquedas numa relação egoísta que sugou boa parte da felicidade antes abundante em seu coração. Bentinho parecia ser um homem charmoso, sério, educado, de aparência carinhosa, mas fatal como um veneno que corrói lentamente ao entrar em contato com a corrente sanguínea. Depois de conhecê-lo, logo engataram um romance e se casaram.

No fundo, Capitu nunca quis casar e ter filhos, mas sempre tivera a necessidade de se sentir aceita e amada. Por caminhos sinuosos, viera a cair no destino que a sociedade tenta impor a toda mulher: a dona de casa servil, a esposa sem voz, a mãe sem vida. Já nesse tempo, apareceram os primeiros sinais da personalidade obsessiva de Bentinho. Ele tentara controlar cada passo da esposa, as palavras e gestos eram motivos para discussões sem fundamento, perquiria a conduta da mesma por dias e noites, sondava as amizades, minava tudo que não incluísse a si mesmo na vida da mulher e quando não atingia tal objetivo, usava de violência. Física e psicológica. Não queria uma companheira senão uma serva. E Capitu, mesmo não sendo serva, tentou ser. Subjugou-se, controlou-se, transformou-se. Mudou tanto que, certo dia, ao se olhar no espelho, não mais reconheceu a mulher independente de outrora. Clic. O castelo de areia desmoronara. A vontade de viver anterior parecia um câncer em estado terminal.

As rodas do táxi deslizavam pelos asfaltos de Paris, contornava belas praças e entrava em ruas desconhecidas. Pela janela, era possível observar os raios solares diminuindo pouco a pouco. O calor dava lugar a uma brisa fresca. Capitu respirou profundamente e uma sensação de liberdade encheu seu coração. O tempo que antes parecia desdenhar de sua juventude, agora passava correndo pelos calendários jogados fora ao término de cada ano, mas a corrida do táxi não tinha fim. Parecia que o senhor dos tempos queria que Capitu refletisse.

Uma pontada de orgulho transcorreu o corpo da outrora cigana e a transportou para o momento em que adquirira sua carta de alforria. Sentiu a caneta com a qual assinou o bendito divórcio ainda em suas mãos e um sorriso espontâneo desenhou seus lábios. A solidão sentida na companhia do ex-marido não mais a atormentava e as chagas das violências sofridas pareciam cicatrizar com o ar morno do continente Europeu. A distância lhe fazia bem, mas algo a incomodava.

O homem lhe sorria faceiro pelas frestas da memória. Logo após o divórcio, Capitu estava decidida a encontrar o verdadeiro amor e terminou por ser emaranhada em teias quase tão tóxicas quanto do antigo casamento. Casamento era mesmo o carma da mulher e Escobar não parecia se importar com as cicatrizes da infeliz instituição. O tal homem era casado, mentiroso e sem caráter. Iludiu Capitu com todos os tipos de dissimulação e arrancou dos olhos oblíquos todo o resquício de confiança que o relacionamento anterior ainda havia deixado para trás. A busca por companhia parecia ser mesmo a doença que catapultaria a vida de Capitu.

O táxi ainda deslizava pelas ruas da cidade até estacionar defronte a um café de tamanho médio, paredes ornamentadas com madeiras escuras e mesas retiradas daqueles filmes dos anos 50. A mulher decidiu mudar o planejado, pagou a corrida, arriscou um “merci” bem aportuguesado e adentrou ao café sentindo o aroma lhe esquentar os ossos e o coração.

Queria tanto ser amada. Desejava tanto um amor. amor não deveria ser matéria de salvação?

Fatigada e desiludida, Capitu se atormentava com questões amorosas. Afinal o que era necessário para ser amada? A bela mulher não sabia, mas os tais relacionamentos das colegas eram tão tóxicos quanto aqueles dos quais conseguira se libertar. As questões corroíam sua mente. Foi aí que, ao olhar para o canto do café, observou uma senhora, que aparentava ter uns oitenta anos, sentada sozinha na mesa, ao lado de uma das janelas. Segurava uma xícara e observava maravilhada aos transeuntes. Não havia nada aparentemente interessante para ser observado, mas a senhoria tinha nos olhos um brilho singular. Era uma felicidade genuína e irracional. Olhou em torno e se deu com os olhos de Capitu, sorriu para a mesma e levantou a pequena xícara em sua direção com quem deseja uma boa tarde e também a possui. Mal sabia a senhorinha envelhecida de olhos brilhantes, mas havia sido a causa de uma revolução no coração da mulher para quem sorria.

Capitu retribuiu o sorriso e deixou o café como quem se despede de um hospital. Sua busca pelo amor alheio cessava ali. A cigana, agora com o olhar maduro - e por que não feliz? -, descobriu naquele fim de tarde que sua salvação não residia em procurar alguém para lhe amar, mas em amar a si mesma.

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