Contável

Autora: Isadora Amabile dos Santos Fabres (Curso Técnico em Eletrotécnica Integrado ao Ensino Médio)
Texto classificado em 2º lugar na categoria "Aluno" do Concurso Literário 2021 do Ifes Campus São Mateus

Basta! Colérico. Fui. Sou. Delírio. Lucidez. A enfermidade circulante no mundo confirma que meus pensamentos estão corretos. Sinto o gosto de aniquilamento preso em minha garganta. Ouço todas as coisas do céu e da terra. Ouço todas as almas (in)concluintes clamando por misericórdia. Como, então, é que sou louco? Escute bem! Eis a minha história.

Estava doente, à beira da morte, em meio a uma longa agonia, quando, enfim, desligaram os ventiladores mecânicos. Levantei-me e percebi que os meus sentidos haviam me abandonado.  A solidão foi a primeira amiga que chegou ao meu lado. Depois, a agitação dos murmurinhos angustiados transformou-se em um silêncio indefinido. Tal silêncio transmitiu para a minha alma a ideia de progressão - talvez devido à perda carnal. Isso por um breve momento, pois logo nada mais senti. Entretanto, durante algum tempo, vi um espelho. Parecia-me sujo e grotescamente antigo. Em seu reflexo, nada. Será que o meu destino ainda estava sendo escolhido? Vi que as pessoas do quarto contorciam-se em uma dança quase torturante. Minha visão vagou, então, para a vela branca acendida ao meu lado. A princípio, o alaranjado da chama conseguiu me passar a sensação de calor tão conhecida, depois, de súbito, uma claridade terrivelmente mortal dominou o meu espírito e senti cada fibra da minha carne estremecer enquanto as labaredas transformavam-se em correntes invisíveis. O pensamento da morte definitiva chegou rapidamente e pareceu atingir a máxima compressão. A escuridão veio. Silêncio. Imobilidade. 

Eu havia morrido. Na enfermaria, tudo estava perdido. A sensação de uma súbita paralisação que ainda permeia a minha memória mundana trouxe de volta movimento e som às minhas antigas lembranças. Senti meu coração bater mais forte. Então, pausa. Som. Pausa. Som. Pausa. A mera consciência da existência perdurou por um longo tempo. Lembrei-me dos meses confinados dentro de casa. Do meu quarto. Das idas apenas ao supermercado. De como a vida mudara tão de repente.

Uma forte pandemia causou uma crise nos sistemas de saúde em todo mundo. As pessoas morriam e eram jogadas em valas sem a oportunidade de se despedirem de seus familiares. Não passavam de dejetos que atrapalhavam a circulação comercial. Era preciso trabalhar. O trabalho produtivo gerava lucro. O mundo não podia parar.

A lembrança completa trouxe o julgamento, os médicos-juízes que ditavam quem ia agora ou depois. A decisão de salvação para uns era o martírio de outros. A dor de não ser escolhido. Por fim, o esvair. Então, eu esquecia tudo para poder seguir. Precisava me livrar dos esforços que tivera para me manter são.

Mantive meus olhos bem abertos. Sentia que estava sem amarras. Suportei mais alguns instantes enquanto desejava estar na minha vida passada e no que eu poderia ter sido ou vivido. Desejava, mas não ousava lamentar tal visão. Temia os julgamentos alheios. Já desperdiçara dez décadas na tentativa falha de agradar quem não tentara um terço me fazer bem. Indivíduos que entravam e logo partiam. E se eu tivesse feito o que queria? E se?

Lutei para voltar a consciência. Lutei para respirar. A escuridão me envolvia. A opressão eu já conhecia. O sufocamento não. Permaneci em silêncio. A sentença havia sido dada. Ao menos era o que eu tinha pensado. Não havia contado com a misericórdia humana daqueles que por muito tempo cuidaram de mim e lamentavam minha situação tão frágil. Tão dependente.

O emprego? Havia perdido.

O cônjuge? Também.

Após três meses em uma cama, quem poderia suportar minha fraqueza além de mim? Cambaleei por algum tempo, tropecei e caí. O sono logo me dominou.

A inquietude do espírito me manteve acordado por muitas horas, mas, finalmente, consegui descansar. Quando acordei, encontrei ao meu lado minha antiga companheira. Seus lindos cabelos loiros reluziam. Seu rosto continuava lindo desde a última vez que a vi. Esperei por um gesto de carinho ou por qualquer palavra dirigida a mim, mas ela permaneceu intacta.

Será que eu estava delirando? Olhei ao redor. A televisão exibia o jornal da tarde: “Brasil chega a 599 mil mortes por Covid-19.” Havia dormido demais. Meio milhão de pessoas morreram nesse período. Pode ter sido meia hora, um dia, uma semana, um mês, um ano. Quem saberia me dizer? Não conseguia ter uma noção exata do tempo. Estava confuso e perplexo. Observei novamente a mulher ao meu lado. Por que ela estava tão calada? Um silêncio sepulcral permeava o local.

Subitamente, avistei sobre a poltrona o seguinte bilhete: “Meu caro esposo! Termina aqui minha espera por ti. Sinto demais a sua ausência e parto agora, pois, sem fôlego, não posso mais aguentar tanta dor.”

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