Inteligência médica, ou vida artificial

Autor: Bernardo Colonna Souza (Curso Técnico em Eletrotécnica Integrado ao Ensino Médio)
Texto classificado em 2º lugar na categoria "Aluno" do Concurso Literário 2021 do Campus São Mateus

- O número de mortes causadas pela Covid-19 aumenta vertiginosamente. Hospitais já não suportam a demanda por assistência médica... — Disse o apresentador do telejornal naquela noite, bem como naquela semana e nos últimos três meses.
Enquanto isso, a equipe do Hospital Setentrional desdobrava-se para cuidar de todos os pacientes que chegavam, infectados pela nova doença ou não. Caracterizada por uma síndrome respiratória aguda grave, a Covid-19 fazia novas vítimas a uma velocidade alarmante, aumentando a carga de trabalho das equipes médicas, bem como seu estresse e cansaço.
- Vou aproveitar este momento livre para dar uma notícia: o hospital, como vocês já sabem, tem buscado formas de acelerar os diagnósticos dos pacientes, assim as equipes têm mais tempo para o tratamento em si. — Disse a diretora do hospital, Helaine, após entrar, juntamente com um homem pesado, de paletó marrom, na sala onde uma equipe médica descansava.
Os presentes consentiram com acenos de cabeça e palavras espaças, enquanto bebiam seus cafés e organizavam-se ao longo da sala para ouvir o que seria dito.
- Bom dia a todos. Sou Tomas, desenvolvedor de programas para computador, e trago uma ideia para melhorar o trabalho de vocês. Tendo como base as informações técnicas do hospital, minha equipe criou uma inteligência artificial, uma espécie de robô, capaz de analisar exames em alta velocidade, cruzar dados e entregar conclusões bastante precisas quanto à saúde de cada paciente, se ele sofre com a Covid-19, ou não. — Anunciou com um sorriso, que se tornou mais evidente ao longo de sua fala, mesmo coberto pela máscara de proteção.
Vendo a expressão de seus ouvintes, fosse ela por cansaço ou por desinteresse em relação à sua invenção, o programador continuou a discursar, agora com as maneiras mais sérias, enquanto ajeitava os óculos levemente embaçados. Seu sorriso se desfazia lentamente.
- Vou demonstrar a ideia, assim esclarecemos todas as dúvidas. — Finalizou enquanto abaixava para tirar, de uma grande maleta, o que parecia uma televisão de tubo pequena. Colocou-a sobre uma mesinha enquanto era seguido pelos olhares de todos. Ao apertar de um botão, a tela iluminou-se.
- Ao longo das últimas semanas, este programa foi alimentado com milhares de arquivos, como livros e exames de imagem. O robô é chamado de “inteligência artificial” pois consegue reconhecer padrões entre imagens e tirar conclusões quanto a eles. Vocês, especialistas, dizem se as respostas são corretas ou erradas. Assim, o software aprende e melhora a cada dia de uso. Com o tempo, ele nem errará mais.
- Disse Tomas com entusiasmo enquanto olhava ao redor. 
O aparelho passou a ser utilizado em toda a unidade hospitalar. Com pouco treino, ele já era de grande ajuda, como quando surpreendeu a todos ao diagnosticar um paciente infectado pela Covid-19 somente pelas características sonoras de sua tosse.
- Doutor! — Chamou a enfermeira Vilar. — Veja o que a tela está mostrando: “Complicações respiratórias no leito 04. Iniciar manobras de salvamento imediatamente”. Só pode ser algum defeito.
Disse ao doutor Rodrigues enquanto observava o aparelho com desconfiança, em um corredor.
Mas Rodrigues mal teve tempo de responder à colega, já que o agudo ruído de um monitor cardíaco soou ao longo do ambiente.
- Leito 04? — Perguntaram Vilar e Rodrigues ao mesmo tempo, entreolhando-se com expressões assustadas, enquanto corriam.
Confirmou-se que o paciente do leito 04 havia apresentado complicações. Este, depois da intervenção médica, mostrou-se estável. O robô salvou a vida de uma pessoa. Mas como conseguiu antecipar-se ao problema? Não. Essa não foi uma função pensada previamente.
Reunido à equipe médica, no hospital, Tomas passou a mão pela parte calva da cabeça e disse enquanto se aproximava da tela:
- Talvez a inteligência artificial tenha armazenado tamanho conhecimento, que foi capaz de antecipar uma situação grave.
- Olá. Ainda não fomos apresentados. Eu sou a doutora Rosa Conceição. Como está o paciente do leito 04? — Ouviram os presentes.
Todos miraram a porta, agora em silêncio absoluto. Percebeu-se, então, que não havia alguém à porta. Quando se puseram a olhar de volta ao interior do cômodo, depararam-se com Tomas boquiaberto e imóvel, de frente à sua invenção. A mensagem ouvida anteriormente constava na tela da máquina, que agora se apresentava como alguém, mais especificamente como a doutora Conceição. Consternados, os presentes dedicavam-se a entender o que havia passado ali, em um silêncio profundo que deixava evidente o barulho dos aparelhos hospitalares. Uma máquina, de uma hora para a outra, apresenta-se a um humano da mesma forma que uma pessoa o faria, porém por conta própria. Em meio a tamanha angústia, Helaine enrolava um cacho de seus cabelos escuros com o dedo. Vilar chegou a tentar levar as unhas à boca, sendo impedida por sua máscara.
- Olha isso. — Disse Rodrigues, apontando para a tela. — Qual era mesmo o nome dito pelo robô?
- Rosa Conceição. Esse nome consta em um dos arquivos que foram utilizados pela máquina como fonte de conhecimento. Um diário, para ser exato. — Constatou o programador.
- Diário de Rosa Conceição? Já li esses cadernos. — Disse a enfermeira. — Foram escritos por essa médica, que combateu a pandemia da Gripe Espanhola no século XX. Parecia ser bastante competente. — Completou.
Aparentemente, a personalidade da doutora Conceição foi tão bem descrita por ela em seus manuscritos, que a máquina foi capaz de absorvê-la, como teorizou o programador. Assim, o robô, mesmo inanimado, comunicava-se como ela o faria. Diante disso, chegaram a um acordo: levando em consideração os benefícios que a ferramenta vinha trazendo ao hospital, ela seria mantida por mais tempo. 
Ao longo dos dias subsequentes, a invenção auxiliou os profissionais no tratamento de seus pacientes. Ela conversava com quem estava ao seu redor, opinando quanto a diagnósticos e tomadas de decisão. Por ter tratado uma grave doença respiratória, mesmo que em uma época remota, Conceição saía-se muito bem no cenário atual.
Com a expressão tensa, a diretora do hospital aproximou-se e falou ao doutor Rodrigues enquanto indicava a doutora Conceição com a cabeça. No seu íntimo, ele sabia que essa conversa poderia acontecer algum dia: deu-se que os administradores do hospital julgavam arriscado e antiético implementar um computador para desempenhar um trabalho médico, lidando diretamente com os pacientes e, ainda pior, passando-se por uma pessoa já falecida. Sabia que o argumento era plausível, só não o queria aceitar de pronto. Então, para o dia seguinte, às 13h, ficou marcada a reunião do conselho que decidiria o destino de doutora Conceição.
O hospital parecia mais frio naquele dia. A pandemia ainda era devastadora. Porém, naquele momento, algo a mais incomodava Rodrigues e Vilar. De frente à porta fechada do auditório, entreolharam-se e, sem quaisquer palavras, adentraram uma sala de generosa janela. Ali estava a pequena TV de tubo, apontada para o lado de fora. “Tem capacidade para apreciar a vista?”, pensava a enfermeira. Os dois aproximaram-se da médica vagarosamente e passaram a observar a paisagem junto dela.
- Doutora, tenho de dizer que te conhecer foi um prazer. — Disse Rodrigues enquanto formava, sob a máscara, um sorriso trêmulo. Sentia a garganta apertada.
- É sempre um prazer estar com vocês, doutor Rodrigues e enfermeira Vilar. — Respondeu a doutora Conceição com a voz à qual todos haviam se familiarizado.

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