Não tão elementar, meu caro Watson

Autora: Andressa De Pianti Lopes (Curso Técnico em Eletrotécnica Integrado ao Ensino Médio)
Texto classificado em 2º lugar na categoria "Aluno" do Concurso Literário 2019 do Ifes Campus São Mateus 

Caro leitor, estou diante do paraíso, e não, não é uma mera metáfora, em minha imaginação uma livraria é o verdadeiro paraíso. O letreiro dourado me desperta a atenção, Augustus Prado, esse é o nome da livraria e suponho que seja o nome do proprietário também, não se engane, eu não sou uma espécie de “Sherlock Holmes do século XXI”, sou apenas uma observadora nata e advogada criminalística, no início de carreira, diga-se de passagem. 

Por um momento me questiono como nunca notei essa livraria, visto que passo por aqui diariamente. Não resisto à tentação e entro. Reconheço que chegarei atrasada “uns cinco minutinhos” no escritório de advocacia, mas depois resolvo isso. 

Um reflexo me chama a atenção, viro e vejo um senhor em uma cadeira de rodas. Os seus cabelos são brancos como o algodão, os olhos azuis da cor do oceano e a pele enrugada eterniza os anos vividos. Ele veste uma camisa verde, cor da esperança, e a calça preta e sapatos marrons indicam uma espécie de mensagem… Ausência de vida nos membros inferiores! 

Uma enfermeira, acredito que seja, pois acompanha o senhor e veste branco, que simboliza paz, e que me remete à infância. Aliás, como o início e o fim da vida são semelhantes! 

Continuo a observar o senhor, que por sua vez aponta para um livro e balbucia meia dúzia de palavras, até que, finalmente, ele consegue falar uma frase por completo. Ele afirma que em uma nação de analfabetos somente os letrados devem ser bem tratados, e finaliza, dizendo que é um insulto o “bruxo” estar justamente naquela prateleira, em seguida revira os olhos e bufa. 

Por tamanha arrogância, a situação se torna “cômica”, e pelo visto eu sou a única que compartilha dessa perspectiva, a enfermeira sequer demonstra alguma reação, na verdade, ela me parece alheia ao fato, sua postura ereta e olhar distante denunciam a sua soberba. 

Dirijo o meu olhar ao livro que o senhor apontou, é O Alquimista - Paulo Coelho, à direita está A Hora da Estrela - Clarice Lispector e à esquerda Dom Quixote de La Mancha - Miguel Cervantes. 
Diante da reação do senhor, não é necessário ser um Sherlock Holmes - ledo engano, a enfermeira continua alheia aos fatos - para saber que fã cativo das obras de Paulo Coelho, ele não é. No entanto, parece ser um admirador das obras consagradas da Literatura. 

Os livros na prateleira me parecem tão pequeninos, nunca imaginei que uma obra seria capaz despertar a fúria e as demais a paixão de um “senhorzinho” - ele me parece tão frágil - me questiono como isso é possível. 

Inesperadamente, o senhor começa a falar, novamente, e de forma discreta volto a minha atenção em cada uma das suas palavras. Em êxtase, ele elogia Clarice por extrair uma beleza melancólica e questionamento existencial sobre os fatos mais banais. Comenta que Cervantes “apenas” escreveu uma das obras literárias mais vendidas do mundo. 

Nas palavras deste senhor, que sequer o nome eu sei, eu encontro o esclarecimento para meu questionamento, que não existia, até eu refletir sobre as palavras de um completo desconhecido. 
Da multiplicidade da Literatura e das infinitas linguagens desta, nascem os múltiplos diálogos que conversam intimamente com cada leitor, de forma que lhe toque a alma. 

Por um momento creio que este meu pensamento seja uma loucura ou uma espécie de devaneio. Então, olho para o senhor encarando os livros, e noto como cada um dialoga de forma intensa com a alma dele, talvez ele não perceba ou resiste em admitir, mas até a obra do Paulo Coelho foi capaz de lhe tocar a alma, deixando impressões que jamais serão esquecidas e/ou apagadas, caso contrário suponho que não teria tamanha reação. 

Meu celular vibra, é o alarme, preciso ir para o escritório, agora. Vou em direção a porta de vidro para sair e vejo o meu reflexo, e penso em quantas cidades, países e continentes já conheci, por meio dos livros, claro, visto que sou apenas uma advogada, no início de carreira. 

Nunca me atentei como os livros marcaram a minha alma, traçando os mais belos e profundos diálogos. Quem diria que as palavras de um completo desconhecido, me fariam despertar para coisas, que eu acabo de descobrir que não são tão banais, como eu imaginava. 

Abruptamente, viro e agradeço ao senhor, mesmo sabendo que ele não entenderá o motivo, provavelmente. E quando eu já estou atravessando a porta, o ouço resmungando, ele diz que eu sou a própria encarnação do Chapeleiro Maluco (do livro Alice no País das Maravilhas). Agora, mais do que nunca, creio que ele seja um amante das obras clássicas, então volto, sorrio e digo a ele, “o meu Watson”, que às vezes não é tão elementar.


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