No horizonte, a seriema

Autor: Gustavo Alves Lima (Curso de Graduação em Engenharia Mecânica)

E aqui a história começa: no meio, sem introdução. Pois, de tão longe, o início disso tudo perdeu o significado prático. Isto é, caso ele um dia tenha existido. Quando um vírus vira o mundo de cabeça para baixo, percebemos que a principal doença não veio com ele. Assim, seria correto afirmar que o início desse caos se deu entre 2019 e 2020?

Mas a mesma luz que entra pela janela nos meus olhos míopes e me guia nos pensamentos mais profundos é a mesma que me lembra que o tempo passa de forma garantida, já eu não passo na escola com essa facilidade. Observando as sombras, o sol já está quase a pino. O vento fresco se foi, e eu fiquei. Me livrando dos devaneios, faço as teclas chiarem em seu monótono "tec-tec-tec" à procura de um conhecimento grudado na internet. 

Umas três letras e ponto final. O que acabei de escrever? Não me lembro. Acho que chegou a hora de mais uma vez me recordar o porquê de tudo isso. 

Pronto, lembrei: não gostei. Assim, subitamente, pergunto: "querido Senhor Teclado, qual a lógica de comprar e investir na produção de tecnologia se a prevenção para a pandemia do século é quase de graça e quase ninguém usa ou faz?". Subitamente, ele responde, impecável, com uma argumentação irrefutável. Mas eu o pergunto de novo, e seguidamente, a mesma resposta é obtida. 
Eu sei que não tem como fugir da resposta, e sei da irrefutabilidade dela, mas porque é tão difícil aceitá-la? Para essa pergunta, talvez eu saiba, talvez não. Mas isso não importa agora. O que importa é que as teclas não se mexem sozinhas, então alguém precisa pressioná-las.

Teclas vão, teclas vêm. Acho que escrevi algo concreto: satisfação. Olho o relógio: decepção. "Caro Senhor Relógio, porque brincas comigo? Por acaso achas que eu gosto de corrida?". O pobre do relógio nem me ouve, só segue o ritmo da mudança temporal. Uma mudança esquisita: uma mera troca de 360° na circunferência. Mas mudança é mudança, fazer o quê? Então entro na brincadeira. Se é para correr, que assim seja! Os olhos voam vidrados pelas telas, seguidos pelos dedos vorazes abraçando os pedaços de plástico com letras. 

Mas no horizonte, lá vem ela.

Sim, ELA. A seriema, debochada, vem do além para dar uma olhada no que chamamos de civilização. Cruza a cerca no mato seco, demonstrando que os presos na história não são elas. Com o nariz empinado, ergue o topete e arregala os olhos. Se não fosse quem sou, diria que ela estava fazendo força para não rir.

Mas do mesmo modo que "o que os olhos não veem, o coração não sente", "o coração sente o que é visto", e o que vejo pela frente não é nada bonito: que conta doida é essa que estou olhando há 20 minutos? Hum... Um, dois, três, entendi. Tão fácil, por que a demora em entendê-la? Agora é só continuar, certo? Sim, isso mesmo. 

Parece que ouço os pássaros aplaudirem o meu desempenho. Com seus cantos harmônicos e peitos coloridos, eles voam nas árvores do quintal: do abricó para o caju; do caju para a manga; da manga para o jamelão; do jamelão, se dispersam. E se dispersam... dispersar... termo curioso, não? 
Mas no horizonte, ela. 

Sim, ELA. Em cima do toco, a seriema ganha espaço na plateia – duas amigas olhando tudo o que têm direito. Jogando a cabeça para trás, ela grita aos 4 cantos. 

É isto mesmo, meu caro espectador: ela racha o bico. Ela ri descaradamente, como se não houvesse amanhã. Com o seu repetido "cocu-cu-CÁ-CÁ-CÁ-CÁ", pergunta enfaticamente: "Que desempenho o quê, sujeito! Baita progresso o seus, não é mesmo, meu irmão?!".

Pois nessa situação, sábia mesmo é a Marília Mendonça quando diz "e agora, de quem é a culpa? A culpa é sua por ter esse sorriso", pois até hoje, com dois anos de pandemia, a única coisa que eu não vi foi máscara transparente rodando por aqui. E olha que eu vi de tudo, desde discussão de voto impresso até vacina metamorfática. 

Mas agora a única coisa que me vem à mente é: "Senhor relógio, acho que já tivemos essa conversa". Nessa brincadeira, ele ganhou a corrida. Chegou a hora de dar uma pausa em sabe-se-lá-o-quê que estava fazendo. Se eu progredi? Não sei. Afinal, o que é a progressão? 

No horizonte, a seriema desce do trono. Acho que ela cansou de rir da minha civilização. No chão, ela passeia com as amigas debaixo da cerca e some mato afora. Outro dia ela reaparece, para dar início a mais um meio sem introdução. Essa não foi a primeira vez, e não será a última.

Deselegante ela é, mas não nego a vontade que tenho de me despir dessa sensação fúnebre e exaustiva, hoje tão comum, e correr com ela sabe-se lá para onde. Talvez um dia, mas hoje não, pois a labuta ainda é grande.

No almoço, ligo a televisão. “Pobre seriema, rimos ou choramos juntos?”. Talvez nenhum dos dois, pois felizmente logo não estarei aqui para tal. Os arcos dos gráficos de vacinação formam sorrisos na tela. Agora é tudo por conta do Senhor Relógio. Essa não era para ser uma responsabilidade só dele, mas creio que todos estamos carecas de saber disso.

Comentários

Postagens mais visitadas