O menino que não sabia ler amor

Autora: Isadora Amabile dos Santos Fabres  (Curso Técnico em Eletrotécnica Integrado ao Ensino Médio)
Texto classificado em 1º lugar na categoria "Aluno" do Concurso Literário 2019 do Ifes Campus São Mateus

Em um daqueles dias preguiçosos, ensolarados e calorentos do mês de fevereiro. Meu avô ainda era vivo e não parava de fumar o maldito cigarro. Eu odiava aquele cheiro insuportável, mas amava o sorriso sincero do meu velhinho de cabelos prateados. Ele amava me contar histórias, mas eu estava entediada. Comecei, então, a mexer na despensa em busca de algo interessante, momento em que, bum, derrubei todas as estantes. Meu avô, assustado, levantou da rede correndo achando que algo tinha acontecido comigo e, logo que me viu caída embaixo da estante e cheia de livros em cima de mim, não se aguentou e começou a rir. “Oh criança desastrada! Sabia que sua mãe era exatamente assim?”. Uma sombra de tristeza sobrevoou o olhar de meu avô, mas ele logo tratou de espantá-la para não deixar perceber. Eu percebi. Ele ainda sofria pela morte de minha mãe. Eu também. A dor nos unia, mas a felicidade e o amor pelos livros também. No meio do amontoado de bagunça que fiz, encontramos um caderno embolorado que parecia ter sido escrito por alguma criança em fase de aprendizado. Eu  e meu avô nos entreolhamos e, movidos pela curiosidade que nos era inata, pegamos o tal caderno com cuidado. 

Era uma vez um menino que não sabia ler e não tinha nome… “Ih, lá vem o era uma vez das histórias infantis”. Meu avô riu e me pediu para ter calma. “Deixe a vida te surpreender.” Pois bem. A história do João sem nome não era bem um conto de fadas, muito menos um drama miserable. O tal menino não sabia mesmo ler, mas dominava o alfabeto e sonhava em ser escritor. “Ora, um escritor que não sabe escrever, vô?”. “Você lê o amor, minha neta?”. Que pergunta estranha. “Não, vô. Amor eu sinto né.” “Pois então sinta, minha querida!”. O pão de João era seu sonho. O de verdade, aquele da padaria, não era muito usual debaixo da ponte onde ele e outros meninos moravam. Isso não impedia João sem nome de ensinar seus amigos que o tal sonho era a matéria que mantinham vivos. Que eles não podiam deixar de sonhar. “Sonho é matéria de salvação!”. Proclamava João aos quatro ventos. “Dá sentido à vida. Norte a solidão”. João não tinha pão, mas tinha muitos sonhos enfileirados em muitos livros. Até seu travesseiro era um livro. Les Misérables, para combinar com sua bela vida.

O tal menino organizava seus livros em ordem alfabética, mas não conseguia ler os títulos. Soletrava, então, uma letra de cada vez numa tentativa falha de dar sentido ao emaranhado literário que vivia dentro de sua cabeça. João dividia seu sonho com outras crianças de rua e ficava feliz ao ver que elas conseguiam ler. Vivia constantemente lutando para aprender algo que lhe foi injustamente privado: a chance de transformar em palavras todas as ideias que jorravam de sua mente. A chance de ler novos mundos, de navegar por outras pátrias, de conhecer outras línguas. 

Apesar dos obstáculos, João sem nome não falava embolado e conseguia se comunicar bem, era um excelente orador, exímio contador de histórias, e, apesar de não ser escritor, era o grande narrador de todo o grupo de crianças debaixo da ponte. João foi carinhosamente apelidado de “Bala”. Sim. “O” Bala. Uma das crianças, após encontrar um livro perdido e sabendo ler, percebeu grandes semelhanças entre seu amigo João sem nome e o protagonista do livro de Jorge Amado. A tal criança não sabia, mas causou uma reviravolta no ser de João sem nome.

João, que agora tinha nome, decidiu se reinventar. O livro falava mais um monte de coisas e eu estava com preguiça de ler tudo. Pulei logo para a última página escrita enquanto meu avô sorria e me chamava de espoleta. As frases derradeiras estavam escritas de lápis e parecia que a pessoa que tinha escrito se sentia muito fraca. Meus olhos se encheram de lágrimas quando li a penúltima frase “João tem nome. É meu pai. Pai que mesmo sem saber ler, me ensinou da melhor forma a palavra amor.” A última quase não consegui ler, pois já estava abraçada a meu avô. “Quando eu não mais estiver aqui, ensine a minha filha que para amar não é preciso de mais nada, apenas amar.” Meu avô sorriu e me disse “ei não sei ler amor, minha neta, mas o sinto todo dia ao te ver acordar!”





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