O mus(eu) do eu

Autora: Andressa de Pianti (Curso Técnico em Eletrotécnica Integrado ao Ensino Médio)
Texto classificado em 3º lugar na categoria "Aluno" do Concurso Literário 2020 do Ifes Campus São Mateus

Dizem que os olhos são a janela da alma. Os meus são um labirinto. Um labirinto? Sim, é possível entrar e jamais sair. Talvez, seja hipérbole. Talvez, seja eufemismo. No entanto, é veras que por esses tudo passa. Tudo passa. Até a uva-passa. Uma pontada de nostalgia transpassa.

De súbito, as reminiscências surgem na minha frente. Como se abrisse um portal e possibilitasse o retorno por um caminho que já foi pedregoso. Lá é incrível. Perdoa-me, ilustre leitor, esqueci-me de apresentar o lugar.

Capitu. Sinto que estás confuso. Refiro-me à livraria. Senti uma cegueira branca. Transformei-me em uma personagem de Saramago? Não, para a enfadonha infelicidade de uma mera mortal, eram apenas as luzes. As paredes eram da cor do sangue que corre nas veias, isso se tu, caro leitor, não pertences à realeza. O piso de madeira brilhava como o Cruzeiro do Sul. Creio que a Cinderela deve encerá-lo.

Carregava os raios solares no cabelo, a faca no brilho dos olhos e a juventude entre as linhas do sorriso. Era uma flor de lótus. Sensível. Intuitiva. Rígida. As lembranças escorrem pelos meus dedos, porém ainda é possível mergulhar no raso das margens. Azul. O vestido era azul como o mar. Gosto disso. O mar é calmaria, mas também sabe ser tormenta. Os sapatos Louboutin conferiam um toque da realeza. Espelho, espelho meu… 

A poltrona estava gelada. Estava. Tempo passado. Uma brisa fria tocou em meu pescoço causando um leve arrepio pela espinha. Observei fixamente as bolhas do cappuccino... de chocolate ou de baunilha? Às vezes, a memória trai-me. Será que Bentinho foi traído? Volto ao ponto. Eu mal sabia que a revolução das palavras estava prestes a eclodir. 

As páginas que toquei eram espinhos. Espinhos inefáveis. A alma era espetada a cada página que os meus dedos transcorriam. Senti a pulsação de cada veia. As lágrimas percorreram cada traço do meu rosto. A angústia parecia um câncer em estado terminal que embalsamava as entranhas. Parei. Parei na página vinte e dois.

Vinte e dois. Dizem que é o número da loucura. Inspirei. Expirei. Retomei a leitura.

Contudo, não era loucura. Era transcendental. Era ela. 

Tu tens pressa. Tic-tac. Tic-tac. O senhor dos tempos não te concedeste a alforria?

Não me guio pelo azucrinante e fastidioso relógio. Sinto muito, caro leitor.

Beberiquei o cappuccino. Relaxei a postura. Fechei os olhos. Precisava de alento. Ilustrado público, o silêncio reinou. Não obstante, abro as cortinas das frestas da memória e retiro o pó sem dó. O espetáculo precisa continuar.

Era ela. Era a Clarice. Era a escritora destemida, confusa e incompreendida. Compreendi a incompreensão. Paradoxo ou antítese? Apenas sei que os dedos tocavam as páginas e as páginas tocavam o espírito. De ímpeto, os vestígios estão enevoados, mas noto um feixe de claridade. Luz. Câmera. Ação. É chegada a vez da protagonista brilhar. 

Macabéa. Tic-tac. Estrela (ofuscada). Foi sufocada, silenciada e subjugada. Bela — há controvérsias — recatada e do lar. Entretanto, possuía liberdade. O meu coração inflou de dor. Liberdade deveria ser matéria de salvação. Todavia, a liberdade de Macabéa era um tanto perecível. Liberdade para servir e sofrer. 

Emaranhava-se paulatinamente nas teias tóxicas da mediocridade alheia. Sofria como uma mártir. Era devota do sofrimento. Os sapatos machucavam-me. Foi corroída pela conveniência do esquecimento de si. Esquecimento imposto pelo corpo social. Nunca pode formular uma sentença na primeira pessoa do singular.

Eu. Sempre foi solitária e incompreendida até por si mesma. Não achava sequer que era gente. Tentou seduzir os homens. Falhou miseravelmente. Não tinha corpo.  Não tinha rosto. Era a úlcera da misoginia. Virou estrela. Era como uma bala perdida. Alojada. Alojada em meu peito. Supliquei por clemência. As funções vitais... A incógnita estava cravada em minha retina.

Embora os momentos sejam folhas de outono, ainda sensibilizam o meu âmago. Queria fugir, gritar e pedir socorro. Lutei. Perdi. Fiquei paralisada. Uma estátua. Uma febre terçã. Estava atordoada. Os instintos mais primitivos pelejaram para voltar. As mãos tremeram. Os dentes rangeram. Os pés tocaram o chão frio. As folhas do livro eram envolvidas pelo choro. Sofrido. Resignado. Submisso. Agora, já consigo assistir à redenção de camarote.

A vida parecia regressar gradativamente. A imagem refletida pelo piso estava momentaneamente turva. Era o pranto. Mesmo assim, contemplei o desabrochar do amor próprio. Podei. Podei as ervas daninhas da masculinidade tóxica. Livre. Livre da insegurança inculcada e da sede insaciável pela perfeição.

Suspirei aliviada. Eram as doses clariceanas em minhas veias. Um eterno verão. Os meus fios brilharam. As bolhas do cappuccino fizeram cócegas em minha narina. Um gole de paz. Um riso amarelo e frouxo escapou. Olhei para o livro. Estava serena. Uma repleta sintonia. A mais bela melodia. Calcei as sandálias. Já não me machucavam. Não te enganes, querido leitor, não era magia. Era simplesmente a minha hora da estrela. Há boatos que o brilho ainda perdura. E no tempo presente, já não preciso usufruir de uma felicidade clandestina.

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