O rei mascarado

Autor: Samuel Gonçalves do Carmo (Servidor)
Texto classificado em 2º lugar na categoria "Servidor" do Concurso Literário 2021 do Ifes Campus São Mateus. 

Tudo aconteceu na Grande Ilha, uma porção de terras no hemisfério sul que tem um povo sofrido, mas, aparentemente, feliz. Foi durante a Grande Pandemia, uma infestação planetária do Novo Coronavírus que levou mais de quatro milhões de pessoas às sepulturas no mundo, e mais de seiscentas mil no país-ilha, isso agora, no século XXI.
Estávamos lá, um dos milhões de cidadãos do país mais controverso do planeta. Sobrevivemos para contar a triste história, aliás, fragmento de história, visto que por aqui não temos guilhotina, e nem Bastilha para derrubarmos, e mudar assim os rumos das coisas.
Judiayr Polvorosa, o rei pro tempore do país, sabia que o povo ilha-grandense precisava de proteção contra o vírus através de decisões tomadas no Grande Palácio, mas por pura arrogância e negacionismo, ignorava qualquer medida preventiva que pudesse evitar com que o vírus tomasse conta da Grande Ilha, mesmo sendo alertado pelos especialistas em saúde e também pelos governos das outras nações, mundo a fora. Não fazia nada e criticava quem fizesse algo.
Era um rei que comandava usando por exército a mentira e a falsidade, e mesmo diante do momento doentio que o mundo atravessava, preferia reinar para si, e não para seus súditos, mas exibia-se diariamente, como imune a tudo aquilo.
No entanto, como sua cara era inconstante frente ao espelho e frente aos problemas da nação, percebeu que se usasse máscara, poderia disfarçar seus já disfarçados semblantes. O espelho refletia a hipocrisia do rei, e o povo, a apatia – sim o povo era o reflexo nítido da apatia real.
O soberano pensava estar reinando, mas de fato, brincava, sendo rei de araque, sendo ele o bobo da corte enquanto o povo adoecia.
Certo dia, Judiayr levou à cara sua máscara preferida, a de Coringa, e foi às ruas. Naquele dia, mais de meio milhão de pessoas já tinham morrido, a tristeza era soberana e o povo clamava por ações: “há meio milhão de pessoas mortas, quantos ainda vão morrer sem que nada seja feito?”, ouvia-se por todos os lados. Mas o rei, ah o rei… o rei andava pelas ruas exibindo sua máscara, às avessas, mas máscara. Em cima dos olhos, mas máscara. Estampa da sua personalidade, mas máscara. E ria dos outros que usavam máscaras por proteção. E ria dos que se distanciavam. E ria dos que higienizavam suas mãos, sofridas mãos. E ria. E ria dos que lamentavam seus mortos.
E nós? Nós estávamos mergulhados na agonia, na dor e na tristeza: o rei ria, nós chorávamos.
Ostentava o rei aquela máscara porque sentia-se poderoso, como se as máscaras conferissem-lhe poder e glória; sentia-se heroico, mesmo sem nada ter feito, nunca. Esquecia el-rey que seu reinado era temporário, por isso sua condição pro-tempore. Fora coroado às pressas depois de sucessivos golpes no Grande Palácio culminado com a indicação imprecisa ao nome de Polvorosa.
Pelas ruas, ria dos doentes, porque ria da pandemia; um resfriado bobo, dizia ele, e ria. Ria e não via que sua máscara não abafava suas gargalhadas, nem tapavam as suas vaciladas. Rio tanto que o disfarce facial foi ao solo, bem ao lamaçal aos seus pés, e sua cara ficou descoberta. Então, um cidadão - moribundo, apático - que passava pela rua apontou para o chão e falou:
- Hei, rei, sua máscara caiu!

Comentários

Postagens mais visitadas