O saber num mar de injustiças

Autora: Gabrielly Rosário Dionisio (Curso Técnico em Mecânica Integrado ao Ensino Médio)

Num mundo repleto de acontecimentos e suas consequências representados ao longo da história da humanidade, era de se esperar que o homem os reconhecesse e os aplicasse na sua vida, evitando novos desastres. Entretanto, com uma pandemia chegando a todos —  ricos, pobres, brancos, negros —  vemos que a humanidade ainda tem muito o que aprender, e novas histórias são criadas ao longo dos dias, dando para muitos novas oportunidades.

É mais uma noite com um belo jantar na casa da família de Pedro, composta pelo jovem de 17 anos, seu pai, sua mãe e sua irmã mais nova Catarina, de 9 anos. Eles moravam na mais linda casa da cidade, a qual todos elogiavam com certa cobiça. Nesta noite, a conversa era a respeito do surgimento da Covid-19, uma nova doença que não parava de aparecer nos jornais e na boca do povo, levando a mudanças às quais eles nunca tinham experimentado.

— Como assim vão parar seu time de vôlei?! —  questionou a mãe.

— Pois é. —  respondeu Pedro. — Falei para eles que aquilo era um exagero. 

— Já não bastavam as reuniões do trabalho agora serem todas online. —  prosseguiu o pai.

— A professora disse que todos precisamos nos manter afastados de outras pessoas e ter meios de proteção —  falou Catarina. Seu pai esperneou.

— Onde já se viu tudo isso!

Como podem perceber, a família não estava lá muito contente com a realidade mundial e suas consequentes responsabilidades, e logo a conversa continuou: futebol, políticos, o parente chato, a encomenda atrasada, até que dona Lia, a empregada, entrou no cômodo para limpar a mesa.

—  Lia, minha querida, que bom que chegou, estava precisando conversar com você! —  disse a mãe de Pedro. — Sabe o quanto precisamos de você aqui, estou pensando…

É de se imaginar o que ela queria com Lia: pediu para que continuasse a vir cuidar da casa, pois não conseguiriam ficar de jeito nenhum sem alguém. Lia, é claro, aceitou de imediato. Como recusaria, sabendo que um não seu seria também um não ao seu atual emprego? Além disso, o emprego não era tão ruim, e muitos estavam na busca de um quando ela estava ali com o seu, pretendia ficar o tempo que fosse necessário.  

Era um sábado e Pedro estava passeando mais uma vez com seus amigos. Jovem saudável, atlético, ainda não sabia qual faculdade cursar… e não se preocupava muito. Com os adiamentos dos vestibulares, ele só pensava em aproveitar um pouco mais os fins de semana. Festas, bares… “Como assim o cinema não abre?”, pensava. Ele não queria se preocupar naquele momento com notícias. Nunca havia, portanto não existiam motivos para se preocupar agora. Nenhum conhecido seu havia pegado essa doença que todos falavam, e sua família ainda tinha que ficar toda em casa, algo do qual ele não suportava nem conseguia fazer.

E assim foram seus dias. O campeonato de vôlei aparentemente corria o risco de ser cancelado, mas Pedro não iria largar de treinar por causa disso. Aquilo era sua vida, o que mais gostava de fazer, como poderia parar por causa dos outros? “Além disso”, pensou, “treinar só fará minha saúde melhorar, é claro”. Como a maioria dos humanos, Pedro sempre procurava uma desculpa para suas ações, ações egoístas, com evidentes consequências vistas apenas quando chegavam, e com esta não foi diferente. 

Certo dia, Pedro estava com os amigos quando recebe uma ligação de seus pais. Na última semana, ele e sua irmã tinham ficado gripados, o que era comum naquela época do ano, disse sua mãe. Mas aparentemente, sua irmã, diferente dele, havia piorado, e os pais decidiram levá-la ao hospital. Achavam melhor que ele voltasse para casa ao invés de ir vê-los, pois ligariam para avisar de qualquer assunto. Ao chegar em sua casa, o rapaz vai conversar com Lia:
—  Como ela está?

—  A pequena estava reclamando muito de dor no peito. —  respondeu apreensiva a senhora. —  O senhor não fique perto dela, rapaz.

— Já sei, já sei. —  disse.

Ao fim da tarde, sua mãe liga para casa e Pedro atende.

—  Oi, mãe, como está a Catarina?

— Está com este vírus maldito! —  lamentou. — Mas liguei para avisar que Lia não estará mais trabalhando conosco. É óbvio que Catarina pegou de alguém, nossa pequena não sai de casa, até avisei ao médico. Nunca devia tê-la deixado trabalhar por mais tempo aqui, agora olha no que deu.
E assim, a senhora foi despedida. 

Às vezes a vida nos pega de surpresa. Às vezes pega todo o mundo de surpresa. E uma pandemia foi uma dessas infortunas surpresas às quais ninguém jamais pensa ser atingido. Um vírus, que mesmo pequeno, soube arranjar seu lugar no mundo. Mas não sozinho, isso com certeza não. Foi com a ajuda dele. Sim, o Ser Humano. Seu meio de locomoção, que às vezes o levava sem se importar, outras vezes sem escolha, outras sem saber. Que em um ano, alcançou aquilo que as pessoas, ainda bem, não conseguiram fazer: fazer boa parte do mundo sentir extrema cansaço e irritação, com dores e desconfortos intermináveis. E ao tentar amenizar isso com os melhores momentos, como um jantar entre amigos, se torna triste ao não sentir o gosto da comida ali presente. E ao fazer algo simples como respirar, percebe que nem o ar está mais ali para te acalentar. Que somente um único caminho é possível e encontrado por alguns para contornar esta situação.

E com todo esse peso… foi muito para a pequena Catarina, que não aguentou depois de três dias no hospital. Um choque para todos da cidade, que não entendiam como poderia a morte levar uma flor tão jovem e cheia de energia. Porém, mesmo negando, todos que estavam ali, consolando sua família, antes mesmo de saberem o que era já tinham consciência do que a tinha levado. E esta é uma das características mais traiçoeiras de tal enfermidade: qualquer um está sujeito, de qualquer lugar ou idade, com a melhor das disposições, levando ainda para outros a chance de passar pelo mesmo. 

Dona Lia, com os falatórios a respeito da última casa em que trabalhou e o motivo de sua saída, acabou não conseguindo outro emprego até então, mesmo não tendo, ainda bem, se contagiado com o vírus, o que significava que Catarina havia pegado de outra pessoa. 

Seus pais não queriam conversar após a tragédia, um sentimento de culpa pairando no lar. Mas ambos ainda teriam a chance de mudar suas vidas, suas perspectivas e definições daquilo que os rodeavam. Eles, assim como Pedro, começaram a perceber que o mundo era muito mais do que sua casa, seu trabalho e suas ideias, que uma bolha precisava ser rompida, pois todas as vidas estão de alguma forma conectadas, e se preocupar com o próximo é também uma forma de se preocupar com nós mesmos e aqueles que amamos. 

Ao longo da semana, Pedro ficou imerso em seus pensamentos. No coração do rapaz, algo o incomodava pelo que tinha acontecido. Uma dor forte em seu peito… infelizmente, tinha entendido as coisas tarde demais, e a calamidade já tinha batido na porta de sua casa. Tinha agendado de correr no próximo fim de semana, e assim, pensar melhor sobre tudo.

Mas infelizmente isso não pôde acontecer.

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