O segredo da vida

Autora: Maria Luiza Carvalho dos Santos Recla de Jesus (Curso Técnico em Eletrotécnica Integrado ao Ensino Médio) Texto classificado em 1º lugar na categoria "Aluno" do Concurso Literário 2021 do Ifes Campus São Mateus

“Você nasceu para fazer a diferença, meu filho…” – foi o que cresci ouvindo do meu pai, o meu herói, que atribuía essa certeza ao significado do meu nome: Calebe, o mesmo de uma figura bíblica que havia sido marcante na conquista da Terra Prometida através da sua lealdade e coragem. E como eu gostaria de ter tamanha coragem para lutar por esses 20 pontos…

Para a minha infelicidade, a professora de história havia resolvido que seria uma boa ideia que os alunos fizessem documentários com pessoas que sobreviveram ao período da pandemia da COVID-19 com “a intenção de nos envolver”, segundo as palavras dela. Eu teria apenas um mês até a entrega e ideia nenhuma de como começar. Estava a um tempo reunindo alguns documentários do YouTube, quando a porta do meu quarto foi aberta silenciosamente. 

– Estou ocupado – avisei friamente sem me virar, sabendo que era a minha mãe.

– Hmm, eu cheguei agora de plantão e como pensei que estivesse com fome, trouxe o seu hambúrguer preferido – ela falou, se aproximando da minha escrivaninha, ainda vestindo o seu jaleco alvo de sempre.

– Estamos em 2055, ninguém mais come essas porcarias – comentei sem emoção.

– Só os que preferem comida de mentira – ela brincou, mas eu não ri. Costumava achar graça quando ela dizia que a comida artificial que comíamos seria considerada um absurdo quando ela era mais nova, mas eu não era mais uma criança para “achar graça”. – Qual o problema, Cal? Precisa de ajuda?

– Apenas aquele documentário idiota – bufei assim que ouvi o apelido tosco. – E eu dou conta sozinho, Doutora Cecília – ironizei, sabendo que ela odiava o fato de eu me recusar a chamá-la de mãe, mamãe ou essas baboseiras.

– Você tem 15 anos, Calebe, e deveria começar a reconhecer que precisa de ajuda – ela se inclinou ao meu lado para olhar de perto o que eu fazia. – Bom, como vejo que não teve muitas ideias, prepare a sua agenda, porque você vem comigo no próximo plantão. Afinal, que lugar melhor para encontrarmos infectados por uma doença do que em um hospital? – sorriu vitoriosa com a minha falta de resposta e saiu tão depressa quanto entrou. 

Já fazia cerca de uma semana desde que eu era obrigado a seguir minha mãe como um cachorrinho em todos os plantões dela, no Hospital Particular de São Paulo, reunindo fichas e pesquisando sobre as pessoas que haviam sido diagnosticadas com a COVID-19 durante a pandemia. Em uma das visitas que fizemos às pessoas que concordaram em participar do documentário, conheci uma senhorinha, que estava internada, vítima de um câncer de pulmão agressivo. Enquanto minha mãe explicava a proposta do trabalho, a senhorinha miúda sorria, torcendo distraidamente a ponta da faixa amarela que usava na cabeça careca, em contraste com o tom escuro da sua pele, que ela disse ser o segredo da sua aparência jovem e saudável. Para o meu alívio, ela aceitou o convite, mas para a minha igual surpresa foi protagonista do que eu posso chamar de história mais trágica que já ouvi.

– Eu tinha 32 anos quando engravidei. Sonhei a vida toda com esse momento e então veio a pandemia. Pensei que a tecnologia seria desenvolvida o bastante para conter a tragédia, mas não cedo o bastante – ela piscou para disfarçar as lágrimas que se acumulavam em seus olhos enrugados pela idade, mas que me transmitiam uma estranha sensação de paz. – Contraí a doença ao final da gravidez e fui entubada, porque o meu caso avançou muito rápido. Quando acordei recebi a notícia que o meu anjo havia encontrado o seu lugar no céu e… Fui obrigada a viver sem ela desde então, sobrevivendo aos traumas daquele pesadelo.

– Sentimos muito, senhora Dandara – minha mãe balbuciou entre lágrimas. 

– Carregarei essa dor para sempre comigo, mas junto dela o amor pela filha que nunca conheci… Vamos nos encontrar no paraíso, tenho certeza – a senhorinha limpou os olhos e sorriu fraco, tentando nos convencer de que estava tudo bem. 

Mas não estava! Como poderia estar?

Faltava pouco mais de uma semana para a entrega do documentário e eu entrevistaria, finalmente, a última pessoa que se dispôs a participar. Segundo as informações que minha mãe reuniu, ela havia nascido em 2020, no antigo hospital público da cidade, o mesmo em que a senhora Dandara estava entubada. Era uma mulher simpática, com o tom de pele chocolate mais lindo que já vi, dona de um olhar terrivelmente solitário, que se chamava Helena. Descobri que ela foi colocada para a adoção logo depois que nasceu, pois segundo as informações fornecidas, sua mãe e única parente, estava em um estado irreversível da doença e faleceu. 

– A única informação que os meus pais adotivos conseguiram sobre a minha mãe é que seu nome era Dandara – ela acrescentou com um sorriso melancólico. 

Pisquei os olhos, desnorteado, e nos minutos seguintes mal pude sentir o meu próprio corpo enquanto ligava para a minha mãe, esperava por ela e a assistia explicar à Helena as nossas suspeitas. Parecia que eu não estava ali… Era como se divagasse em meio ao espaço cósmico, sem consciência ou um corpo físico.

Em resposta, Helena concordou que mesmo que Dandara não fosse de fato sua mãe biológica, estava disposta a descobrir. Então, combinamos de levá-la conosco ao hospital, que era exatamente onde estávamos agora. 

Chegamos ao quarto da senhorinha e fomos cumprimentados com um sorriso doce, que me roubou o fôlego assim que o achei incrivelmente similar aos que Helena havia deixado escapar. Minha mãe deve ter notado o mesmo, pois cumprimentou a senhora rapidamente e sugeriu que elas conversassem a sós. Senti uma carranca se formar nos meus lábios quando fui guiado para fora do quarto, mas obedeci e me encostei na parede do corredor excessivamente branco junto com a mais velha, que me puxou para si.

– Meu pequeno Cal – ela deixou escapar com a voz falhando enquanto acariciava os meus cabelos que eram tão pretos quanto os do meu pai. 

Não falei nada, apenas a apertei com mais força contra o meu corpo, sentindo o cheiro doce de jasmim que sempre amei e agora reconheci como sendo o dela. Ficamos ali, indiferentes a quem visse as nossas lágrimas que brotavam silenciosamente, até que um grito carregado de emoção ressoou pelo corredor. Uma enfermeira veio correndo com a intenção de entrar no quarto da dona Dandara.

– Não entre… – tratei de impedi-la com um sorriso, enquanto enxugava as lágrimas que pensei terem sido drenadas do meu corpo desde o velório do meu pai. – Uma mãe finalmente encontrou a filha perdida. 

Minha mãe soltou o fôlego que havia prendido com o susto e relaxou no mesmo lugar, rindo entre lágrimas. A acompanhei, inconscientemente, e senti o coração doer ao perceber que esse havia sido o momento mais feliz que compartilhamos nos últimos quatro anos, desde… Bom, desde que somos apenas nós dois.

– Mãe, e-eu… – falei com a intenção de me desculpar por ter me afastado quando ela estava ali disposta a me apoiar e precisando de mim. Afinal, assim como eu perdi um pai, ela também perdeu um marido.

– Eu sei, Cal – ela suspirou e me puxou novamente para os seus braços, lugar de onde eu não tinha vontade de sair tão cedo. – Está tudo bem agora.

Através da ferida de uma mãe que teve sua filha tirada de si, finalmente pude enxergar que o segredo da vida é dar valor ao que temos no presente antes que isso seja tomado de nós. Descobri que não preciso de muito, mas que devo ser grato pelo que tenho comigo, afinal é isso o que realmente importa.

Comentários

Postagens mais visitadas