O senhor calmo e o homem indignado

Autora: Kamilly Victória dos Santos Batista (Curso Técnico em Eletrotécnica Integrado ao Ensino Médio)

Tenho certeza que poucos ou quase ninguém para pra pensar em qual seria o último local que veria, mas eu sei que qualquer lugar seria melhor do que o corredor de um hospital público. De onde estou eu consigo ver uma sala com outros que tiveram o mesmo desprazer de pegar essa doença. Ao contrário do que imaginam para um hospital, o ambiente até é bem alegre. No corredor em que estou desde que fui transferido por falta de leitos tem uma pequena janela de vidro amarelado de um lado e uma porta de correr do outro de frente para a minha maca com algumas mensagens de apoio dos enfermeiros e familiares, ainda não me decidi se isso me alegra ou me deprimi já que nenhum dos meus parentes sequer pudera vir me visitar. Mas você deve está se perguntando como eu ainda acho esse lugar caindo aos pedaços “alegre” mesmo depois de narrar o que eu narrei. Pois bem, realmente a primeira vista não aparenta ser, mas o que o torna alegre é o fato de que desde que fui transferido, nenhuma pessoa faleceu por causa da covid, na verdade os meus colegas de enfermidade estão recebendo alta e voltando para as suas casas. Isso me anima e me traz uma pontada de esperança, afinal eu ainda não fui entubado.

“Olá Pedro, feliz porque irá sair do corredor hoje?” Uma enfermeira atenciosa que ainda não sei o nome se aproxima de mim com seu traje de proteção azul substituindo o habitual jaleco branco que os enfermeiros e médicos costumavam usar.

“Na verdade não sei, tenho receio de que seja pior lá dentro.” Realmente, por mais que muitos tenham recebido alta e liberado as vagas no cômodo em frente à minha maca, sempre aflora um medinho de que algo dê terrivelmente errado.

“Não se preocupe, pior que esse corredor lhe garanto que não será. Além do mais, lá você poderá conhecer outras pessoas.” Percebo que ela tenta soar otimista, mas os seus olhos castanhos cobertos pelos óculos me dizem outra coisa.

Após alguns minutos de mudança, os enfermeiros me instalam no novo ambiente que eu estou acostumado a ver somente pela porta de correr em frente ao corredor, e confesso que seu interior é bem maior do que eu pensava. Tem no total dez leitos, onde cinco são isolados e destinados para os casos mais graves e os outros cinco são para pacientes como eu, que não pioram e nem melhoram, que ficam esperando pelo melhor ou pelo pior. As paredes brancas refletem a luz que vem das lâmpadas no teto e há também um pequeno banheiro e uma televisão presa a parede cuja qualidade é questionável. O leito em que eu estou fica no canto encostado a parede e ao meu lado há um senhor de idade que suponho que tenha uns sessenta anos.

Não sou muito fã de jogar papo fora, mas esse senhor me é intrigante, ele possui uma felicidade descomunal e um semblante sereno que contrasta com os rostos das outras pessoas que transbordam medo por está aqui. Por isso, dessa vez sou eu que inicio a conversa.

“Olá senhor, por que desse rosto sereno e em paz sendo que está aqui internado por causa de uma doença que veio tão de repente?" O senhor me olha e deixa escapar um pequeno sorriso como se estivesse prestes a responder uma criancinha curiosa.

“Meu rapaz, eu estou feliz por saber que, independente ao que acontecer aqui, eu estou em paz com a minha vida. Trabalhei boa parte dela e pude sustentar minha família sem prejudicar e nem passar por cima de ninguém. Conheci meus netos e eles são crianças adoráveis e bem educadas. Me sinto realizado e pronto para partir caso seja necessário.”

Mesmo não admitindo em voz alta, o que ele disse me surpreendeu. É muito difícil achar alguém que tenha tido uma completa felicidade e calma perante essa situação. Continuamos nosso papo e começamos a nos acostumar com a convivência um do outro com o passar dos dias, até que chegou o momento que fomos obrigados a dizer adeus. Não! Não é isso que você pensou, ele não morreu. Seu Antônio (durante nossas conversas descobri seu nome) recebeu alta e foi para casa, ele agora está na lista das pessoas que venceram a covid.

Eu? Bom, eu achava que seria o próximo a ir para casa, mas na verdade depois de mais algumas semanas, meu estado de saúde piorou. Os médicos disseram que o vírus, junto com uma outro problema de saúde que eu não sabia que possuía, danificou sistemas importantes para o funcionamento de alguns órgãos. Fiquei desesperado no início, eu era jovem e tinha ainda uma vida inteira pela frente. O que eu fiz para chegar a esse ponto? Por que aquele idoso se recuperou e não estou me recuperando também? Isso é injusto! Mas toda a minha indignação não serviu de nada para reverter essa situação, e depois de dois dias na UTI, a vida deixou o meu corpo junto com a esperança de um dia poder voltar para casa.

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