Esquece, você não vai entender

Dielson Soares de Oliveira Junior (Curso Técnico em Eletrotécnica Integrado ao Ensino Médio)
Revisão textual: Rivana Zache Bylaardt (Professora de Língua Portuguesa, de Literaturas de Língua Portuguesa e de Língua Espanhola)

Como leitor, para mim, uma das principais partes do processo de leitura é o ato de discutir a obra após finalizá-la. É certo que existe um benefício à compreensão do texto, porém, meu motivo era mais simples: eu queria compartilhar as sensações que tive com o livro. Infelizmente, não foi tão fácil quanto eu gostaria.

Desde muito jovem tive uma relação íntima com a literatura. Mas, não me entenda errado, eu não tinha nenhum interesse particular por livros. Muito pelo contrário: eles tinham por mim. Dentro de casa e no colégio, os livros me perseguiam, e eu não via motivo para fugir.

O ritual era sempre igual. Eu cumprimentava o livro. Conversávamos, até não haver mais sobre o quê conversar. Me despedia. E nunca mais ele passava por minha mente.

E assim foi, ao menos por alguns anos. Meus breves, insípidos e imemoráveis encontros se pilhavam, formando um montante de experiências sem valor e nem memória. Não tinha esperanças, muito menos vontade, de ter um encontro aprazível, acreditando piamente de que seria sempre assim. Para meu desassossego, meu primeiro amor me provou o contrário.

Lembro bem de quando eu o vi pela primeira vez. Ele sentava-se à frente da professora e ao lado de outros semelhantes a ele. Porém, nenhum era como ele. Seu rosto, suas costas, até mesmo os seus lados, mostravam que ele era diferente de tudo que veio antes dele. Mas, o que mais me atraía nele era seu nome: Oliver Twist. Um lindo nome, sem dúvidas.

Não foi o Oliver que me escolheu. Não, não dessa vez. A professora pediu para que escolhêssemos o que chamava nossa atenção, e a escolha óbvia era ele.

Um órfão, precariedade, trabalho infantil, delinquência e mistério foram os ingredientes formadores da minha primeira paixão. Ah, Oliver Twist, como te amei. A escrita nua, realista, às vezes ácida e sempre interessante o fez ser o guia do meu gosto literário por anos.

Contei todo o enredo do livro, múltiplas vezes, para todos que tinham ouvidos e estavam próximos o bastante de mim. Enquanto contava, recebia olhares pensativos. Olhares de quem está imerso em pensamentos — pensamentos esses que não estão em sinergia com os seus. Olhares de quem não estava lhe dando completa atenção. Era o tipo de olhar que eu mais odiava, e, devo dizer, ainda odeio.

Pensando com cuidado, acredito que estavam se questionando sobre o quão saudável aquilo era. Para eles, Oliver era como um colega suspeito que seus pais pedem que você se afaste: mórbido, cru em suas palavras e às vezes cruel. Para mim, assim como um colega suspeito, ele era apenas divertido. Mas talvez ele de fato não fosse uma boa companhia para quem não havia completado nem dez anos.

De qualquer forma, foram nesses momentos de desatenção alheia que eu descobri a expressão “esquece, você não vai entender”, e a repeti até deixar de falar sobre minha paixão.

Porém, não deixei essa situação me abalar demais. Guardei minha primeira vez no coração e segui em frente. Mais importante, tudo que veio depois de Oliver foi diferente, pois ele me ensinou a amar. Meus encontros tornaram-se saborosos, inesquecíveis e prolongados.

De repente, um apetite moderado foi formado em mim. No início, eram livros semelhantes aos anteriores. Depois de um tempo, passei a provar de outros gêneros, e vaguei sem fim por histórias paralelas. Quando me toquei, meu apetite moderado tornou-se uma fome insaciável por bons textos. O que eu ainda não sabia é que as mordidas esfomeadas que eu dava nesses livros, me morderiam de volta.

Tudo começou quando tomei um gosto especial por livros informativos. Não necessariamente do tipo que educa, pois, informar e educar são duas coisas muito diferentes. Livros sobre fatos históricos ultraespecíficos, biográficos, de instrução sobre disciplinas diversas e muitos outros compunham meu novo repertório.

A concretude naquela literatura era o que me atraía; em minha mente, eu estava vendo um pedaço da vida. Por isso, na época, gravitei muito para biografias. Mesmo assim, a maioria desses livros ainda soavam pouco realistas. O que depois descobri foi que a falta de relevância e conexão com a vida real era o que os afastava de mãos censuradoras. Para elas, nada incomoda mais do que a realidade.

Minimanual do Guerrilheiro Urbano, por Carlos Marighella. O livro que guiou os guerrilheiros comunistas durante a ditadura militar. Foi a primeira vez que eu corri atrás de um livro por conta do autor, ao contrário de todas outras vezes que fui atraído pelo título ou pela capa. Na época, eu não tinha nenhum conhecimento sobre política, nem intenção de revolução, apenas uma admiração profunda pela história e peso cultural por trás daquele livro. Ler ele me fazia sentir a realidade por trás daqueles fatos históricos e, até mesmo nas seções mais pragmáticas e racionais, uma quantidade imensa de emoções era palpável.

E quando percebi estava fechado numa sala com meus pais, uma profissional de saúde mental, um professor, e meu livro no centro de todos.

Meus pais não checavam os livros que eu lia, pois, se me acompanhassem em toda visita ao sebo, não teriam tempo sobrando para suas próprias atividades. Porém, isso nunca foi um problema. Que mal um livro pode fazer?

Fui bombardeado com perguntas que nem pareciam fazer sentido. Respondi com a maior gentileza que pude encontrar dentro de mim, pois não tinha forças para brigar. Eventualmente, a pior pergunta possível chegou:

— Por que você estava lendo isso?

— É... então, eu…

Fiz menção de começar a explicar, mas notei o olhar de quem me perguntou. Um pouco mais maduro, entendi melhor aquele olhar. É o olhar de quem pergunta esperando uma resposta, e caso não receba, decide entender como se tivesse recebido. O olhar de quem está disposto a distorcer a realidade para alimentar seu ego, para provar para si mesmo que tem expertise em ler pessoas. Claramente, não foi a profissional de saúde quem perguntou. Com um sorriso, eu disse:

— Esquece, você não vai entender.

Olhares surpresos e ofendidos me penetraram. Me senti extremamente confuso, pois, aquela era, para mim, a forma mais educada de lidar com a situação. Bom, não é característico de garotos e treze anos serem socialmente letrados.

Como esperado, fui punido pelas minhas transgressões. Depois da punição, Marighella foi tirado de mim e não me tiraram mais nada. Continuaram dizendo que meu hábito era ótimo, benéfico, e outras coisas, mas deixando claro que ele tinha limites. Para esses casos, formulei uma nova resposta: “fazer o quê, né?”

Depois de toda confusão, os livros perderam o gosto.

Sempre que eu estava lendo um livro, eu era lembrado da situação. No entanto, acrescento que ela não me incomodava tanto. Talvez eu tenha me desinteressado naturalmente, sei que nunca saberei. O que sei é que: de um livro semanal, passei a ler um livro por ano. Breve, insípido e imemorável.

No mesmo período, me tornei mais sociável. Mas asseguro que livros não me fizeram antissocial, e, se fizeram algo, foi me conectar aos outros. Conversar com estranhos se tornou meu passatempo. Por isso, digo que “nunca larguei a literatura, só mudei a forma que lia”. O que são pessoas senão livros sem sinopse? Ainda assim, livros com capa e papel não tocaram minhas mãos por muito tempo.

Anos depois, quando eu já havia esquecido tudo, ele apareceu. Osamu Dazai e sua principal obra, Declínio de um Homem, que foi escrita pouco antes de seu suicídio. Um livro semiautobiográfico, uma memória literária. Ah, Dazai, como você me fisgou. A paixão pela obra, a fome pelas palavras, o apreço pelo realismo e a admiração pelo autor; sentimentos que foram cultivados em mim durante todos esses anos, você colheu. Li cada trecho com cuidado e calma, tentando agarrar os sentidos e significados que você colocou na sua obra, pois naquelas palavras estavam muito mais do que caracteres: estava ali também a sua vida.

Eu precisava falar com alguém. Eu queria, como em todas as outras vezes, que as pessoas sentissem o que eu estava sentindo. Então, tentei. Contei, com toda euforia que estava dentro de mim, a história, e chequei os olhos. Eram olhos que eu conhecia bem: eram os olhos de quem ainda não havia entendido. Apenas.

— Esquece, vou tentar explicar de outro jeito... — E continuei até que meu ouvinte entendesse. E ele me deu outra perspectiva da história, que admito que demorei a entender, mas valeu a pena quando entendi.

Diante do meu trajeto, diria que não apenas livros formam leitores, como leitores formam livros. Vejo muito em mim que o proveito que eu tirava da literatura, cresceu com a minha idade, e não se fica mais inteligente com o tempo, se fica mais experiente. E é assim que o leitor interage com o livro: ele projeta a própria vida, suas experiências, na obra que lê, floreando-a com sua perspectiva.

A formação como leitor ultrapassa a formação como acadêmico; é, acima de tudo, sobre sua formação como humano. De resto, só me resta dizer uma coisa: com toda sinceridade e carinho, espero que você tenha entendido.

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