PERDIDA ENTRE O SONHO E A REALIDADE

Ela era apenas uma garota que gostava de brincar com seus amigos imaginários e tinha um desejo enorme de viajar. Um dia, ouviu que “os livros te levam para diferentes mundos sem que você precise sair do lugar”. Ficou com isso na cabeça, pois lhe parecia incrível poder viajar sem sair do lugar, sem precisar de dinheiro para pagar passagem e nem hospedagem. Opa! Mas é preciso ter dinheiro para comprar os livros, certo? Esses que muito lhe encantavam quando os admirava na estante da casa de uma amiga, pensando que seria difícil ter acesso a eles, pois o dono da casa tinha muito ciúmes do seu acervo. Mesmo assim, ficou com a ideia fixa de que precisava ler os tão sonhados livros. 

Ficou matutando como conseguiria um livro, até lembrar da Biblioteca Municipal. “Hum! Mas lá a bibliotecária também tem ciúmes dos livros”. Lembrou de quando chegava à biblioteca para fazer uma pesquisa na enciclopédia, era a bibliotecária que a entregava com a indicação do trecho que deveria ser copiado, recomendando muito cuidado com os livros. Ou seja, não havia oportunidade nem de folheá-los e logo lhe vinha à mente: “livros são muito preciosos, devem ser muito caros, por isso não deixam a gente toca-los”. 

Com o passar do tempo e o correr da vida, eis que chegou a adolescência, e muitas coisas mudaram: mudou de casa, mudou de escola, seu corpo mudou, mas a ideia fixa de ler um livro não mudava, não calava. 

Bom, já estava mocinha, já poderia trabalhar, mas onde? Começou a ajudar a sua mãe nas encomendas de bordados, e quando veio o seu primeiro pagamento, correu até a banca de revista encontrou o livro “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, que estava sendo vendido como parte da “Coleção Clássicos da Literatura”, do jornal “O Globo”. A leitura era difícil, mas aquela história a deixou curiosa: “como pode alguém, depois de morto, escrever suas memórias? ”. Mas essa é a magia da literatura: o autor tem a liberdade de registrar um mundo e o leitor a oportunidade de viajar por ele! Viajar por esses mundos, lhe encantava a cada nova leitura. 

Depois dessa aventura pelo mundo do Brás Cubas, o seu desejo de continuar se aventurando em outras leituras só aumentou. 

Chegando o mês seguinte, foi até a sua mãe pedir o pagamento para comprar o próximo livro da coleção, a resposta não foi bem o que esperava: “Minha filha, depois que eu e seu pai nos separamos, precisei usar todo o dinheiro para nossas necessidades básicas! ” Essa notícia a entristeceu, mas compreendeu que era necessário todos ajudarem no sustento da família, pois a ausência do seu pai exigia de sua mãe um esforço maior  para que não faltasse comida na mesa.

Enquanto estava entretida nos afazeres dos bordados, ouviu uma voz chamando, era o mascate. Dessa vez, além de produtos de cama, mesa e banho, ele trouxe uma coleção de livros. Os olhos da garota brilharam. Imediatamente chamou sua mãe para contar a novidade. O mascate propôs a forma de pagamento dividida em 12 prestações. Ficou na torcida, falou que iria também aprender crochê para aumentar a renda familiar. A mãe, ao ver tamanho esforço da filha, decidiu comprar a coleção. 

Não perdeu tempo, e assim, seguiu viajando por outros mundos, que a encantavam a cada novo livro. Numa dessas leituras se deparou com o conto “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa. Se identificou muito com ele, imaginou que o seu pai também estaria numa espécie de terceira margem, assim como o narrador... ressentia-se muito da ausência de seu pai. Ficou tão imersa nessa estória que decidiu fazer da leitura a sua terceira margem do rio, lá ficava sonhando. Enquanto estava lendo, embarcava nas histórias e viajava na ficção, o que a fazia esquecer da realidade, e esquecia da ausência do seu pai. Se sentia perdida entre o sonho e a realidade. 

Mas não poderia viver só de sonhos, era necessário voltar à realidade, por mais dolorosa que ela fosse. Como diz a canção de Elis Regina: “viver é melhor que sonhar”. Será que é isso mesmo? Por que não sonhar? Afinal, as grandes invenções surgiram a partir de sonhos, a partir de idealizações. 

Com o amadurecimento, foi aprendendo que poderia se permitir transitar entre o sonho e a realidade, sonhando vez ou outra, voltando à realidade mais fortalecida.

Autora: Sheila Guimarães Martins (Bibliotecária-Documentalista)

Conto baseado em memórias de leitura da autora.

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publicados aqui no Selet@ Literári@!

Comentários

  1. Lindo texto Sheilinha! A gente vai aprendendo a transformar as dores em poesia....

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  2. Ótimo texto Sheila. Viajei para muitos tempos de trás, me identificando com essa menina em tantos momentos.

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  3. Lindo! Parabéns Sheila!

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